GALERIA

Só mais um passo

Flávio pilotava, certa vez, sobre uma cordilheira, quando seu pequeno monomotor sofreu uma pane, caindo sobre a montanha de neves eternas. Ele não chegou a se ferir gravemente, mas suas pernas apresentaram profundos cortes e sérios ferimentos.

Com muito esforço, sentindo dores atrozes, ele abandonou a cabine do avião destroçado. Verificando a extensão dos ferimentos, compreendeu que não teria como sair dali sozinho. Ao seu redor, até onde a vista alcançava, era somente a solidão gelada.

Conhecedor da região, em rápida análise, entendeu que seu fim estava próximo, principalmente em razão dos ferimentos nas pernas. Por um instante sentiu-se tomado de pânico e pela dor de saber que chegara ao fim de seus dias.

Pensou na família que não tornaria a ver, nos amigos, nas tantas coisas que ainda pretendia realizar e na impotência de não ter a quem pedir socorro.

Depois, já mais calmo, começou a pensar sobre as medidas a tomar. Não havia nada a fazer para garantir a sobrevivência.

O mais sensato era deitar-se na neve e esperar que o torpor causado pelo frio tomasse conta de seu corpo, permitindo-lhe ser envolvido, sem dor, pelo manto da morte.

Deitado sobre a neve, Flávio dirigiu o pensamento a seus filhos. Filhos que ele não veria crescer. Pensou na esposa, de quem tanto gostava.

Aquele homem de espírito forte, batalhador, lutava consigo mesmo para se resignar à situação.

Começou a pensar em voz alta: “vou morrer, mas ao menos tenho o consolo de saber que eles não ficarão desamparados.”

Meu seguro de vida tem cobertura suficiente para lhes proporcionar subsistência por muito tempo. Menos mal.

Felizmente tive o bom senso de estar preparado para uma situação destas. Tão logo seja liberado meu atestado de óbito, a companhia de seguros…”

Neste instante, ele teve um sobressalto. Sua apólice de seguro dizia que o seguro somente seria pago mediante a apresentação do atestado de óbito. Ora, naquele lugar inacessível, seu corpo jamais seria encontrado. Ele seria dado como desaparecido.

Não haveria, pois, atestado de óbito. Sua família não receberia o valor da apólice. Iria passar anos de privações, antes que ele fosse considerado oficialmente morto. Apavorou-se com a idéia.

“a primeira tempestade de neve que cair”, pensou ele, “soterrará o meu corpo. Nunca irão me achar. Preciso caminhar até um lugar onde meu corpo possa ser encontrado.”

Ele sabia que ao pé da cordilheira havia um povoado. Precisava chegar até lá, para que o seu corpo fosse encontrado.

Reuniu todas as forças que ainda lhe restavam. Ficou em pé. Foi preciso um esforço enorme para não cair. A dor era quase insuportável.

Consciente da distância que teria de percorrer, estabeleceu a meta de dar um passo. Jogou uma perna para frente e disse:

– Só um passo!

Com extrema dificuldade empurrou a outra perna e repetiu:

– Só mais um passo! – E de novo: – Só mais um passo!

Concentrando toda sua energia apenas no próximo passo e estabelecendo um forte condicionamento positivo através do comando “Só mais um passo” ele caminhou quilômetros pela neve. Não se permitia pensar na distância que ainda faltava percorre ou em sua dificuldade para se locomover; concentrava-se apenas no espaço a ser vencido pelo passo seguinte. Assim, caminhou o dia todo.

A tarde já ia avançada, quando seus olhos turvos pela dor e pelo cansaço, ele vislumbrou uns vultos. Deviam ser caçadores. Deixou-se escorregar para o chão e concluiu: “agora eu já posso morrer.”

Dias depois, no hospital, abriu os olhos e a primeira imagem que viu foi a da esposa, ao seu lado.

Flávio teve alguns dedos de um dos pés amputados, pois haviam sido congelados pela neve. Mas continuou vivo por muito tempo, junto da sua amada família.